sobre conexões que transcendem o controle
[on connections that transcend control]

Ana Lira, Independent Artist

Eu sabia que ele não encontraria o que queria;
e sabia, também, que aquela era a última vez,
a última vez, que a minha capacidade de articulação
e conhecimento seriam usados
para olhar a minha região pela perspectiva das ausências.

Passei a dedicar meu trabalho como artista, fotógrafa, curadora, narradora, editora, articuladora e outros desdobramentos para evidenciar os processos de expansão e criação dos povos e lugares que compõem meus circuitos de vida; e faço isso por entender que sempre ocupamos outros lugares tangíveis e não visíveis que transcendem o estereótipo de “povos marginalizados, tutelados e incapazes,” resultantes dos sistemas de invasão, transferência e genocídio praticados pela atividade colonial e suas filiações contemporâneas.

Quando fui convidada para elaborar o prefácio desta publicação—South Boom Boom—esta era a minha principal motivação: estar em diálogo com outres criadores em estado de expansão de seus ciclos. As experiências dos textos, contudo, me mostraram que as violências visíveis e simbólicas, que ganham novos contornos a cada ciclo, continuam (de)marcando as vidas criativas mesmo em territórios que se dizem em revisão de seus “passados, estruturas e metodologias colonais.”

O Boom Boom que deveria remeter a uma explosão de sensorialidades em pleno processo de revigoramento e celebração, pelas integridades de suas criações, ganha outros gestos. Eles materializam-se no direito-desejo de evidenciar como as ainda presentes experiências de violência podem ser revertidas em estados de recusa desta contínua renovação das exclusões colonais.

Eu entendo que pode parecer incomum usar os termos recusa e exclusão em lugares distintos, mas se a recusa ocorre como gesto de resposta a uma política de exclusão, ela oferece manifestações diferentes da recusa que ocorre como resultado da política de exclusão em si. A recusa como gesto é uma resposta assertiva de artistes, criações e vivências a uma política que começa pelo uso termo “Sul Global” associado a expressões complicadas como “história dos vencidos” e “regiões em desenvolvimento,” em vez da conexão com existências que sempre colaboraram para a manutenção vital do planeta em todas as suas dimensões.

A recusa também atua na mesma vibração quando vem como resposta a um caminho de mediação do próprio termo “Sul” como substituto contemporâneo de “Índio” ou de “O outro,” que foram palavras utilizadas para nomear qualquer povo com manifestações diferentes do que era aceito por diversos modelos do projeto colonial.

Se há de se responder pelo termo “Sul,” que seja pela integridade de sua presença e pela possibilidade de admitir que dele também podemos ver que existem lestes, noroestes, oestes, nordestes, sudoestes, sudestes e diversos pontos intermediários, diagonais e opostos de vibração, que alteram a percepção e as sensibilidades criativas do globo quando se manifestam, inclusive pontos dentro do “Norte Global” que o próprio norte não vê.

Por isso, recusar uma política de exclusão com uma resposta que afirma a presença de corpos que sentem – em suas liberdades de expressar raiva, frustração, distância, força, devaneios, segredos ou desejo de desmonte – é um caminho interessante para compor laços possíveis entre artistes, curadores, coreografes, diretores, escritores e outres manifestantes de lugares tão diferentes, mas que foram convidades para responder ao chamado da publicação. Deste modo, ainda que saibamos que nem todo o grupo de criadores do programa está neste recorte assertivo e que nem todes que receberam o convite puderam colaborar, há boas sementes aqui.

Acho importante pontuar a questão do recorte porque moro no Brasil, um país cuja imensa territorialidade foi consolidada pelo projeto colonial colocando dentro de uma camisa de força povos, culturas, dinâmicas e manifestações que não tinham unidade entre si – e continuam não tendo. Prefiro trabalhar com a recusa desta unidade justamente para que você que está entrando neste diálogo compreenda que a presença de diverses brasileires nesta publicação não significa um bloco homogêneo e muito menos a concentração de saberes de um mesmo ponto do “Sul Global.”

As diversas regiões do Brasil nem falam a mesma língua – ainda que haja o português brasileiro – e muito menos expressam-se de forma semelhante. Por vivermos diante de muitas possibilidades sempre, entendemos a necessidade de que, às vezes, recortes são necessários. Se precisarmos, por exemplo, fazer uma publicação com povos negrodescendentes da costa leste do Brasil – onde eu resido – trabalharemos com gestos de norte a sul da costa, uma distinção imensa de expressões resultantes dos encontros/dissonâncias entre povos originários e povos vindos das diásporas e migrações (voluntárias e forçadas) que chegaram ao país.

É amplo e inda assim é um recorte do cenário de povos que oferecem muitas perguntas e muitas respostas distintas para processos de existência, mantendo fluxos de articulação de suas nuances como proposições paralelas às contínuas políticas de enquadramento e unificação. O exemplo do Brasil é importante, inclusive, para compreendermos a amplitude de expressões, nesta mesma publicação, uma vez que ela traz textos de colaboradores de países que estão em outras partes geográficas do globo, a exemplo do Irã.

É também importante comunicar que, ao escrever esta apresentação, eu tive acesso a conteúdos em línguas várias e, mesmo entre criadores que falavam inglês ou português brasileiro, eram internamente expressões que não estavam neutralizadas por sistemas de controle gramatical e vocabular. A experiência me ofereceu um bom horizonte de interação, inclusive com textos que eu não tenho ideia do que está escrito, porque acessei seus conteúdos por meio de línguas que não falo e as experimentei a partir de outras naturezas de relação.

Observei nuances ou o que eu imagino como palavras entrelaçarem-se compondo movimentos que fazem meus olhos produzirem movimentos pela tela. Eu preferi interagir com elas dessa maneira, em vez de colocar os conteúdos nos tradutores online para descobrir o que significam. O meu mais recente trabalho como artista-curadora-articuladora é sobre não forçar processos de tradução, de modo que esta relação com os segredos das línguas alheias me estimulam de outros modos.

Eu não sinto necessidade de saber tudo porque somos povos que oferecemos muitas perguntas e muitas respostas distintas para processos de existência; e quanto mais elaborarmos estes cotidianos em diálogo com os sentires que queremos expressar, mais temos chances de manter fluxos de articulação de sistemas complexos, que é o que efetivamente importa neste cenário.

Digo isso porque venho de um contexto familiar e comunitário que evita hierarquizar saberes culturais, ainda que entenda a importância dos procedimentos de cada manifestação destes saberes. Este é um traço de vários outros povos negrodescendentes e indígenas do Brasil que marca muito a noção de criação das coletividades e comunidades – e percebo que com suas especificidades, ele também aparece em dinâmicas de outros povos do planeta, incluindo os que colaboraram para South Boom Boom.

A questão é que estas nuances vão sendo apagadas ou desconsideradas quando criadores começam a se relacionar com certos setores da arte e passam a ter que traduzir suas subjetividades para as subjetividades aceitas nos circuitos derivados de sensibilidades, metodologias e categorias criadas pelo projeto colonial, implantadas no sistema moderno e renovadas em certas movimentações da arte contemporânea.

Faço este comentário porque também recebi esta formação em parte da minha vida escolar/acadêmica e passei quase uma década com a minha subjetividade sequestrada, em uma hipnose provocada pela convivência com um certo tipo de abordagem cultural e intelectual que recusava os saberes do corpo e dos povos cujas criações não passavam pelo “controle dos instintos pelo entendimento.”

Este foi o momento que eu sinto que trilhei caminhos que não eram meus, em que usei parte da minha energia para defender ou escrever sobre movimentos que silenciavam ainda mais a vivacidade do que somos em nossas integridades. Em meus processos de desneutralização, eu percebi que criar não é uma metodologia de treinamento, separada da vida, como parece ser para povos que fecharam os olhos para os seus criares cotidianos e passaram a entender isso como um ofício extra-casa ou uma especialização.

Em uma comunidade indígena brasileira ninguém se separa da vida para aprender a fazer adereços com graus de complexidade e trançados exímios. Na Guiné-Bissau ou em Baro ninguém busca especialização para aprender a talhar um tronco de árvore e fazer djembes com sonoridades de colocar corpos em transe. Migramos para entrar em contato e não porque partimos do princípio que não sabemos. Este sentimento está bastante presente em alguns conteúdos aqui propostos e é muito bom perceber que é possível chegar a reflexões semelhantes por outros caminhos, inclusive situados no campo do não entendimento formal de uma língua.

Esta é uma síntese de South Boom Boom. Uma coletânea de sementes das reflexões de propositores oriundes de coletividades criadoras que não aceitam ter suas subjetividades encurraladas por relações de poder que não as respeitam.

sobre elos que transcendem controles

—Ana Lira para South Boom Boom


on connections that transcend control

I knew he wouldn't find what he wanted;
and I knew, as well, that this was the last time,
the last time that my articulation skills
and knowledge would be used
to look at my region from the perspective of absences.

After this encounter, I began to dedicate my work as an artist, photographer, curator, storyteller, editor, and articulator to highlighting the processes of expansion and creation of the peoples and places that make up my life circuits. I do this because I understand that we always occupy other tangible and non-visible places that transcend the stereotype of so-called "marginalised, tutelaged and incapable peoples," resulting from the systems of invasion, transfer and genocide practiced by colonial activity and its contemporary affiliations.

When I was invited to write the preface of this publication— South Boom Boom—this was my main motivation: to be in dialogue with other creators in a state of expanding their cycles. The experiences of the texts, however, showed me that visible and symbolic violence, which gains new contours in each cycle, continues to (de)mark creative lives even in territories that claim to be revising their "colonial pasts, structures and methodologies."

The Boom Boom – that should refer to an explosion of sensorialities in full process of invigoration and celebration, by the integrality of its creations, open other gestures. They materialise in the direito-desejo (right-desire) to highlight how still-present experiences of violence can be reverted into states of refusal of this continuous renewal of colonial exclusions.

I understand that it may seem uncommon to use the terms “refusal and “exclusion” in these different contexts. However, if refusal occurs as a gesture of response to a politics of exclusion, then it offers different manifestations than the refusal that occurs as a result of the politics of exclusion itself. Refusal as a gesture is an assertive response of artists, creations and experiences to a politics that begins with the use of the term "Global South," associated with complicated expressions such as "history of the defeated" and "developing regions," rather than with the connection to existences that have always collaborated for the vital maintenance of the planet in all its dimensions.

Refusal also acts with the same vibration when it comes as a response to a way of mediating the very term "South" as a contemporary substitute for "Indian" or "The Other," which were words used to name any people with manifestations different from what was accepted by various models of the colonial project.

If there is to be an answer to the term "South," let it be for the integrity of its presence and the possibility of admitting that from this term we can also see that there are easts, north-wests, wests, north-easts, south-wests, south-easts and various points in between: diagonals and opposites of vibration that alter the perception and creative sensibilities of the globe when they manifest, including points within the "Global North" that the north itself does not see.

Therefore, refusing a policy of exclusion with a response that affirms the presence of bodies that feel—in their freedom to express anger, frustration, distance, strength, reveries, secrets or desire for dismantling—is an interesting way to compose possible links between artists, curators, choreographers, directors, writers and other demonstrators from such different places, but who were invited to respond to the publication's call. In this way, even though we know that not all of the programme's group of creators are in this selection and that not all those who received the invitation were able to collaborate, there are good seeds here.

I think it is important to point out the question of the selection because I live in Brazil, a country whose immense territoriality was consolidated by the colonial project that placed within a straitjacket peoples, cultures, dynamics and manifestations that had no unity among themselves - and still do not. I prefer to work with the refusal of this unity precisely so that you, who are entering this dialogue, understand that the presence of diverse Brazilians in this publication does not mean a homogeneous block, much less a concentration of knowledge from the same point in the "Global South."

The various regions of Brazil do not speak the same language—even though there is a Brazilian Portuguese—and, even less, do they express themselves in a similar way. Because we are constantly confronted with many possibilities, we understand the need to make the necessary selections. If we need, for example, to make a publication with black people descending from the east coast of Brazil—where I live—we will be working with gestures from north to south of the coast: an immense distinction of expressions resulting from the encounters/dissonances between original peoples and peoples coming from diasporas and migrations (voluntary and forced) that arrived in the country.

It is broad and still it is a partial fragment of the scenario of peoples who offer many questions and many different answers to processes of existence, maintaining flows of articulation of their nuances as propositions parallel to the continuous policies of framing and unification.

It is also important to communicate that, while writing this presentation, I had access to contents in several languages that, even among creators who spoke English or Brazilian Portuguese, brought expressions not neutralised by grammatical and vocabular control systems. The experience offered me a good horizon of interaction, even in the texts where I cannot understand what is written, since I accessed them through languages that I do not speak and experienced them through other natures of relation.

I observed nuances or what I imagine as words intertwining, making my eyes move across the screen. I preferred to interact with them in this way, rather than putting the contents into online translators to find out what they mean. My most recent work as an artist-curator-articulator is about not forcing translation processes, so this relationship with the secrets of other people's languages stimulates me in other ways.

I don't feel the need to know everything because we are peoples who offer many questions and many different answers for processes of existence; and the more we elaborate these daily lives in dialogue with the feelings we want to express, the more we have chances of maintaining flows of articulation of complex systems, which is what effectively matters in this scenario.

I say this because I come from a family and community context that avoids hierarchising cultural knowledge, even though I understand the importance of the procedures of each manifestation of this knowledge. This is a trait of several other black-descendent and indigenous peoples in Brazil that greatly marks the notion of creation of collectivities and communities—and I realise that with its own specificities, it also appears in dynamics of other peoples on the planet, including those who collaborated on South Boom Boom.

The point is that these nuances are erased or disregarded when creators begin to relate to certain sectors of art and are continually forced to translate their subjectivities into the subjectivities accepted in the circuits derived from sensibilities, methodologies and categories created by the colonial project, implanted in the modern system and renewed in certain movements in contemporary art.

I make this comment because I also received this training for a large part of my academic life and spent almost a decade having my subjectivity kidnapped through a hypnosis provoked by living with a certain type of cultural and intellectual approach that refused the knowledge of the body and of the people whose creations did not pass through the control of instincts through understanding.

This was the moment when I feel I walked paths that were not mine, where I used part of my energy to defend or write about movements that silenced even more the vivacity of what we are in our integrities. In my de-neutralisation processes, I realised that creating is not a training methodology, separate from life, as it seems to be for people who closed their eyes to their daily creations and started to understand it as an extra-daily craft or a specialisation.

In a Brazilian indigenous community, no one separates themselves from life to learn how to make ornaments with high degrees of complexity and exquisite weaves. In Guinea-Bissau or Baro no one seeks specialisation to learn how to carve a tree trunk and make djembes with sounds that put bodies in a trance. We migrate to make contact and not because we assume we don't know. This feeling is quite present in some of the contents proposed here and it is very good to realise that it is possible to reach similar reflections through other paths, even when they are placed outside the fields formally understood as knowledge.

—Ana Lira for South Boom Boom 


Biography

Visual artist, photographer, curator, radio host, writer and editor based in Recife (PE - Brazil). She is a specialist in Cultural Journalism with an emphasis on Theory and Critique of Culture. It observes (in)visibility as a form of power and pays attention to dynamics involving everyday sensitivities. His practice is based on collective processes and partnerships, having worked with them for more than two decades. In these initiatives, it is dedicated to strengthening collaborative creation practices that observe the between the lines of power relations that affect our communication process, the articulations of everyday life and the way we produce knowledge in the world. She is a member of the collective EhCho.org, Nacional Trovoa and CARNI - Coletivo de Arte Negra e Indígena.

© 2022 Ana Lira

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